segunda-feira, 12 de julho de 2010

Licenciatura para surdos abre novos horizontes

Já lá vai o tempo em que as mãos dos estudantes surdos eram amarradas para os obrigar a oralizar o que lhes fosse possível. O mundo evoluiu, mas esta minoria continuou a enfrentar a insensibilidade da maioria dita "normal". Mas um pequeno grande passo está a ser tomado na Universidade Católica de Lisboa

A Universidade Católica tem um grupo de estudantes muito especial: são 24 alunos, todos surdos, que estão a frequentar a primeira licenciatura em Língua Gestual Portuguesa (LGP), a única no país a ser totalmente ministrada neste tipo de comunicação e com respeito pelos valores partilhados por esta comunidade, que em Portugal conta com mais de 33 mil pessoas.

Coordenada por José Lagarto e Ana Mineiro, esta licenciatura do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa (UCP) quer-se revolucionária para as novas gerações. Um orgulho para Ana Mineiro (em destaque na foto de capa): "Sabemos que o curso vai valorizar a comunidade. A Constituição da República reconhece, desde 1997, que a LGP é uma língua oficial, estando previsto que haja ensino bilingue para surdos, mas o facto é que não há surdos formados especificamente para essa missão. Há intérpretes, mas não é a mesma coisa. Não é a língua nativa deles e uma coisa é ser nativo, outra é saber fazer uma tradução", diz Ana Mineiro.

Além disso, como reforça a docente, eles vão ser professores de pleno direito e poderão integrar as escolas de referência, do básico ao secundário, através do apoio já garantido pelo Ministério da Educação

Para os alunos que se encontram atualmente a frequentar o primeiro ano, esta está a ser uma experiência plena. Ema Gonçalves é dos Açores e o seu entusiasmo e esforço financeiro conseguem trazê-la a Lisboa em cada 15 dias, ou na pior das hipóteses, uma vez por mês. No resto do tempo, as aulas são realizadas à distância através de uma plataforma e- learning e em conferências on-line com os professores. "Já antes trabalhava como formadora de LGP, mas sempre quis obter o nível académico que me permitisse ser professora.

Estar aqui na Católica está a dar-me muita força e sentido de responsabilidade. E o conhecimento que temos acumulado tem sido muito importante e por vezes até arrepiante. Custoume saber, por exemplo, na disciplina História da Educação dos Surdos que no Egito e em outras sociedades mais antigas, os surdos eram automaticamente deitados ao rio", conta Ema.

Se as atrocidades acabaram, a verdade é que a realidade está bem longe de ser perfeita. Amílcar Morais, colaborador da Católica em projetos de investigação e também a frequentar esta licenciatura, lembra que a comunidade surda há muito que é vista apenas na perspetiva médica, sendo relegado para segundo plano o seu enquadramento sociológico. "Os médicos colam o rótulo de deficientes às pessoas surdas, porque se cingem à ausência de audição. Quando uma criança surda nasce, a preocupação médica incide apenas na deficiência, na reabilitação, na oralidade, na terapia da fala. A criança segue, pois, este caminho e não adquire uma língua em concreto, pois a língua oral não é natural na pessoa surda", aponta Amílcar Morais.

Para o universitário - que também já foi formador -, os médicos poderiam ter um papel preponderante na informação sociocultural que chega às famílias. "É fundamental encorajar as crianças a aprender língua gestual desde cedo e que os pais aprendam também, de forma a que o desenvolvimento da criança possa ser absolutamente natural".

É com esta mudança de mentalidades que Amílcar sonha, esperando que ele e os seus colegas, uma vez terminada a licenciatura, consigam fazer a diferença. Junto das escolas, junto do Ministério da Educação, junto da sociedade portuguesa. "Porque tendo o grau académico, não vai haver desculpas para nos olharem de cima. Queremos respeito pela cultura e valores da comunidade surda", reforça Amílcar Morais.

Um entusiasmo no futuro que será partilhado por mais alunos a partir de outubro. O curso já abriu candidaturas para o próximo ano e as inscrições estão a decorrer a bom ritmo.


Fonte: Semanário Expresso de 3 de Julho 2010. Texto de Marisa Antunes

Sem comentários:

Enviar um comentário